O país precisa urgentemente de um programa de gas release como também fixar objetivos para o limite de concentração do mercado de gás no médio e longo prazo
A frase destacada no título desse artigo é uma adaptação à frase creditada ao falecido economista, Roberto Campos, que se referia, na visão dele, à dificuldade do país avançar em pautas liberais.
Tal situação se encaixa perfeitamente no caso do mercado de gás do Brasil, onde ainda não conseguimos avançar no caminho das melhores práticas internacionais.
Nas últimas três décadas o mundo vivenciou uma corrente liberalizadora dos negócios tradicionalmente regulados e com características comuns, como os setores de gás, energia e telecomunicações, sendo que o objetivo principal era o de colocar à disposição dos consumidores serviços seguros a preço razoável.
Aqui no Brasil, apesar de algumas tentativas de se produzir um arcabouço legal e regulatório moderno para promover uma abertura correta e efetiva do mercado de gás, não conseguimos avançar numa pauta liberal.
Somente em 2019 esse cenário começou a sofrer mudanças, a partir do Termo de Cessação de Conduta – TCC firmado entre o Cade e a Petrobras por iniciativa do Governo Federal. Em 2021, a Lei nº 14.134 foi um novo marco importante, que embora ainda distante das boas práticas internacionais, veio a se somar ao TCC. Em 2022, o CNPE dá um novo passo adiante com a Resolução nº 03, que estabelece as diretrizes do desenho do novo mercado de gás indicando que deveríamos avançar na direção das boas práticas.
Outras ações se seguiram até os dias de hoje com o governo demonstrando sua real intenção de abrir o mercado de gás no país em busca de recuperar a competitividade perdida na última década. Cabe ressaltar que processos dessa natureza só prosperaram onde os governos assumiram o papel de promotor da abertura, realizando o seu planejamento e acompanhamento da evolução.
Aqui no Brasil não tivemos um bom planejamento nem um sequenciamento adequado (a resolução 03/2022 do CNPE deveria ter vindo em 1º lugar). Apesar da forma pouco ordenada, algumas barreiras, antes intransponíveis, foram sendo superadas, mas apesar de alguns avanços, ainda estamos distantes de um ponto de “não retorno” ao mercado monopolista e fechado do passado.
Nesse contexto, surge o Programa Gás para Empregar do MME, que se reveste de grande importância no sentido de que contribui para uma melhor organização e interlocução com os agentes e estabelece objetivos e prioridades do processo de abertura do mercado de gás no país.
Muitas foram as iniciativas desde o TCC, mas o ritmo do processo de abertura do mercado de gás encontra dificuldades, seja pela resistência de alguns a uma pauta liberal para o mercado de gás, seja pela dificuldade e certa incompreensão das agências reguladoras na promoção de mudanças no caminho da abertura do mercado, ou mesmo pela resistência e poder natural do agente dominante.
Com relação a este último, minha experiencia no processo de abertura do mercado europeu de gás me faz crer que, assim como ocorreu em muitos países, o agente dominante buscará defender seu mercado. A diferença no Brasil, que traz uma maior complexidade e preocupação, diz respeito ao agente dominante ser controlado pelo governo, o que poderia trazer menor intensidade e velocidade no processo de redução da concentração de mercado.
Cabe sempre remarcar que o objetivo da abertura do mercado de gás deve ser o de oferecer ao consumidor final um fornecimento seguro a preços competitivos, ampliando a possibilidade real para elegerem seu fornecedor, com reais ganhos de eficiência. A liberalização não é sinônimo de desregulação e sim de uma mudança de filosofia rumo a uma regulação orientada à concorrência.
Trata-se de encontrar um equilíbrio entre a maior concorrência, a transparência e a necessidade de regulação.
Reduzir a concentração, aumentar a concorrência e conectar o fornecedor ao consumidor final deveria ser de prioridade máxima para governos e reguladores federal e estaduais. Ainda vemos um mercado altamente concentrado do lado da oferta e poucos consumidores elegíveis.
Reduzir a concentração no mercado é um desafio que o governo e o Congresso precisarão enfrentar no próximo ano, quando estaremos entrando no 4º ano da Lei 14.134. A título de exemplo, em países como Espanha e Itália, passados cinco anos da Diretiva de 98 que liberalizou os mercados de gás na UE, já se negociava mais de 80% do volume de gás no mercado livre.
Aqui, passados cerca de quatro anos, ainda estamos distantes desse patamar e andando em ritmo lento. É fundamental que o MME estabeleça para 2025 uma agenda da abertura do mercado de gás, mas precisará contar também com a ANP, as agências estaduais e o Cade, rumo a uma regulação orientada à concorrência e à lógica do mercado.
Essa agenda deveria, em primeiro lugar, procurar fixar as metas de concentração de médio e longo prazo, pois sem um objetivo claro, nos moldes de um Gas Target Model, podemos encontrar algumas barreiras e resistências que, no mínimo, retardarão o processo de abertura do mercado.
Um exemplo disso foi o recuo do senador Laércio Oliveira (SE) em sua proposta inicial para o projeto de lei PL 327/2021, que estabelecia um programa de gas release contendo diretrizes legais para a realização de leilões de oferta de gás natural pelo agente dominante, visando a redução do alto nível de concentração atual do mercado.
A proposta inicial do senador estabelecia que um comercializador de gás que ultrapassasse o limite de 50% de concentração de mercado deveria realizar um leilão para venda compulsória de pelo menos 20% da quantidade de gás natural excedente, observando as melhores práticas internacionais da indústria para programas de venda compulsória de gás natural.
Embora a proposta não retratasse as melhores práticas existentes, já representava um bom avanço, mas infelizmente o relator deve ter encontrado resistência em sua pauta liberal que seria muito positiva para o país. O país precisa implementar medidas urgente para aumentar a concorrência e dar liquidez ao mercado de gás.
Diversos países na UE realizaram programas de gas release, dentre eles o Reino Unido, Espanha, Itália, França, Dinamarca, Alemanha, Áustria, Itália, Hungria, com grande êxito. Os programas variaram entre 3 e 6 anos (esses processos devem ter começo e fim) e serviram para dar um grande impulso ao processo de desconcentração e de diversidade de ofertantes.
Importante lembrar que a introdução da concorrência passa necessariamente pela redução do nível de concentração do mercado. Nesse sentido, tão importante quanto lançar um programa de gas release será definir claramente, assim como ocorre na UE, o objetivo de concentração que se quer alcançar.
Nos principais países que tornaram seus mercados de gás abertos e competitivos o índice HHI – Herfindahl-Hirschman Index é bastante utilizado e deveria, em linha com a resolução CNPE 03/2022, ser também adotado aqui no Brasil.
Se considera que um nível ótimo para o HHI seria de 1.500 pontos num máximo de 10.000. Na UE o regulador europeu – ACER indica com objetivo para os países membros 2.000 pontos.
No Brasil o HHI ainda está próximo de 7.000, apesar do recuo recente com a entrada do GNL dos terminais privados, o que é considerado muito alto e característico de um mercado concentrado e de baixa concorrência.
A proposta do senador Laércio, apesar de representar um avanço, ainda não permitiria ao país chegar próximo de um HHI mínimo razoável, que seria de 2.500 pontos. Para se alcançar um HHI de 2.500, a Petrobras deveria ceder muito mais de seu atual mercado, talvez se situando com máximo em 40% de market share.
Importante ressaltar que a redução da concentração, para o HHI ser reduzido, deveria ficar distribuído em pelo menos 4 ou 5 outros comercializadores. Isso não será tarefa fácil, o que nos faz crer que o processo aqui será mais longo do que foi na UE.
Somente um programa de gas release no mercado de gás natural e o livre acesso às infraestruturas essenciais poderão abreviar esse prazo e acelerar a abertura do mercado de gás, reduzindo a atual concentração e aumentando a eficiência da utilização das infraestruturas.
Em mercados altamente concentrados, como o nosso, é comum a adoção de medidas regulatórias para reduzir o grau de concentração e o poder de mercado da empresa existente, principalmente se as consequências dessa situação provocarem barreiras à entrada e afetarem a liquidez nas transações comerciais.
Iniciativas como programas de gas release foram aplicadas com êxito em muitos países e deveria receber do Congresso e do governo o mais amplo apoio, já que os interesses do agente dominante não deveriam impor nenhuma barreira para o bem do país e do mercado.
Na Espanha, por exemplo, o governo facilitou a entrada de novos agentes com a decisão de liberar 25% do gás importado da Argélia. Ao fim de dois anos, a limitação ao agente dominante acabaria. O programa estimulou uma corrida dos novos agentes em busca de contratos de importação de longo prazo. O resultado foi um excesso de oferta.
Um programa de gas release, para sua maior efetividade, deveria vir acompanhado também de um cronograma de migração compulsória dos consumidores industriais e de GNV para o mercado livre, eliminando qualquer tipo de barreira existente, pois os volumes de gás liberados devem ser direcionados prioritariamente ao fornecimento aos consumidores elegíveis.
O gas release é, sem dúvida, uma ferramenta fundamental que o Governo não pode abrir mão se quer garantir um nível de competição saudável no mercado de gás no curto e médio prazo. Mas se queremos avançar na direção de um mercado organizado do gás será necessário também, em breve tempo, instituir um Operador de Mercado e Gestor de Garantias e contar com a Petrobras atuando como market maker, realizando leilões diários de compra e venda para dar liquidez ao mercado de gás.
Essas duas iniciativas acima, somadas (i) à realização de um programa de gas release; (ii) à definição de metas de concentração de mercado pelo HHI; (iii) e à definição de um cronograma de migração compulsória de consumidores ao mercado livre deveriam estar na Agenda 2025 do Programa “Gás para Empregar”.
Fonte: Brasil Energia